Atlântico e Pacífico

Vastos, os oceanos não são

Azuis.

Eles são estes teus olhos

Verdes.

          Francisco Cleóbulo Teixeira

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Amor de mármore

Em pedra ou em mármore

Eu te esculpo

A meu bel-prazer.

Te faço perfeita

Ingênua, pura

E sem graça.

Apago teu jeito

Te boto defeitos

Me fazes sofrer.

Me fazes amar

Intensamente

Enfim, odiar.

Te obrigo a trair-me

Pretexto

Para te humilhar.

Tu choras pedindo

Pedaços de amor

Aos meus pés.

Sorrimos num beijo

Eu, estátua

Tu, escultora.

Francisco Cleóbulo Teixeira

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O seqüestro

Olhei para o banco de trás do carro, enquanto os faróis cortavam a escuridão da estrada. O homem gemia baixinho, meio inconsciente, meio atordoado, acordando aos poucos. Estava bem amarrado, bem amordaçado e provavelmente com uma baita dor de cabeça, efeito do éter que cheirou na marra. Tinha sido muito fácil até ali. Um cara importante como esse, andando por aí sem nenhum guarda-costas…

O representante do consórcio que estava me pagando tinha deixado bem claro o seguinte: todos os consorciados, sem exceção, queriam que eu o fizesse sofrer o máximo possível. Essas pessoas eram vítimas diretas ou indiretas (havia até caso de suicídio) da atuação empresarial deste indivíduo nos últimos anos.

Não me agradava tal tipo de exigência, uma vez que a principal característica do meu modus operandi é uma ação rápida e limpa, sem possibilidades de deixar rastros. Mas o representante foi categórico, disse-me que todos queriam até uma fita gravada com os gritos de agonia do sujeito! Pra enfatizar mais este ponto, colocou no telefone uma das vítimas, a viúva de um suicida, que me suplicou aos prantos: “Moço, não sei quem você é, mas por tudo quanto lhe é sagrado, faça aquele cachorro sofrer! Corte fora o saco dele, queime os olhos dele, faça…” e não conseguiu mais falar, a voz embargada pela emoção e o choro.

Havia mais nove pessoas do consórcio com igual ou maior rancor. Certamente, o cara tinha feito um estrago do diabo na vida dessas pessoas; tudo em nome de uma tal de Qualidade Total, que, segundo o representante, era a expressão e o pretexto mais utilizado pelo sacana ultimamente. É sempre um punhado de sujeitos assim quem decide os destinos dos outros, da maioria, agindo como se não soubessem que, em se tratando de gente, não existe essa porra de Qualidade Total. De tempos em tempos aparece uma onda, um modismo invariavelmente criado com o intuito de dar suporte aos instintos predadores dessa corja. Atualmente, é Neoliberalismo pra lá, Qualidade Total pra cá, e blá-blá-blá, etc. Bem, eu não sigo nenhuma onda, nenhum modismo; não sou nenhum executivo moderno, sou um antiquado executor, um predador de predadores. Decidi aceitar o serviço, mas dobrei o preço por conta das exigências.

Ele já estava todo acordado quando dobrei à esquerda, pegando uma estrada velha de terra batida que levava ao armazém. Naquele armazém não poderia haver ninguém àquela hora, já havia checado isso ene vezes. Mas se tivesse alguém lá, azar dele por estar no lugar errado e na hora errada: eu faria o serviço do mesmo jeito, apenas com algumas adaptações circunstanciais.

Chegamos, deixei o homem no carro e fui dar uma última checada no local. Além da lâmpada a gás, havia trazido uma enorme lanterna. Tudo limpo. Voltei para o carro, arrastei o cara para dentro do armazém, acendi a lâmpada a gás e dei inicio aos trabalhos.

Tirei-lhe a mordaça, ele desandou a falar atropeladamente, gaguejando uma pergunta atrás da outra, aí eu liguei o pequeno gravador. Era um tipo magro, de meia idade, óculos de grau, estatura em torno de 1,75m, barba rala em um rosto comprido e os cabelos já meio grisalhos. Ele estava certo de que aquilo era um seqüestro. Logo que o coloquei a par da real situação, começou a tremer e a mudar de cor. Tirei do bolso o papel com os nomes dos consorciados, peguei o revólver e mostrei-lhe o tambor, para ele ver que só havia uma bala. O jogo consistia numa variante da velha roleta russa: eu lia um nome do papel, girava o tambor e puxava o gatilho.

Clic! O homem se desmanchava de medo, chorava feito uma menina, suplicava, se contorcia no chão. O pequeno gravador era desligado quando eu falava, já que só interessava a voz dele e outros sons por ele produzidos. A cada vez que apertava o gatilho eu fazia uma pausa, só pra aumentar o suspense. No terceiro clic, o cara se mijou. A propósito, a bala também seria um clic, pois não era uma bala de verdade, não era sequer uma bala de festim. Mas isso ele não sabia. Após o sétimo clic, fui forçado a recuar dois passos: ele tinha esvaziado os intestinos. O homem era tão frouxo quanto qualquer outro numa situação dessas, mas não tinha problema de coração. Se fosse cardíaco já teria pifado. Aquele não era um jogo para cardíacos.

Depois do décimo e último clic, parabenizei-o pela sorte que tinha, mas fui logo avisando que iria repetir todo o processo. É que precisávamos descobrir qual daqueles nomes na lista iria alojar-lhe uma bala na cabeça. Foi então que ele, juntando um resto de coragem, perguntou-me quanto eu estava ganhando pra fazer aquilo. Não lhe falei quanto, e ele me fez uma contraproposta que seria quase o dobro do meu pagamento. Guardei o revólver, disse-lhe que não poderia aceitar, mas que iria acabar logo com o seu sofrimento.

Saquei da pistola com um silenciador que eu mesmo tinha feito com uma garrafa de plástico, mirando-lhe a cabeça bem entre os olhos. Ele rapidamente dobrou a contraproposta, ofereceu outras garantias, jurou pela alma da mãe que não procuraria a polícia depois. Olhei bem nos olhos dele, simulei uma expressão de dúvida, de indecisão. O homem animou-se. Achou que, com sua infalível lábia de executivo bem-sucedido, estava novamente assumindo o controle, conforme lhe era natural. Iniciou uma verdadeira pregação: que um homem como ele não podia ser morto assim; que pessoas do porte dele eram muito importantes para a conjuntura econômica do país; que todo homem tem um preço e ele sabia qual era o meu; que aqueles com quem eu havia contratado eram uns fracos, eram ralé, podiam ser excluídos sem problemas; finalmente, que eu e ele éramos feitos da mesma matéria.

Balancei afirmativamente a cabeça, aparentando concordar com toda aquela baboseira. Ele sorriu cheio de esperanças. Comecei a baixar a arma. Os olhos dele se iluminaram de confiança. Daquela distância, nem precisei fazer mira para o joelho dele. Puxei o gatilho. O silenciador provocou um estampido seco e surdo, inaudível a média distância, mas os berros dele logo encheram o armazém. O desgraçado rolou pelo chão, todo enroscado em torno da perna arrebentada, berrando feito um animal recém-castrado. Olhava para mim com uma expressão que era uma mistura de pavor com incredulidade. Será que um sujeito tão esperto quanto aquele ainda não sabia da existência de tipos iguais a mim andando por aí? Desejei sinceramente prolongar aquilo, mas os gritos poderiam ser ouvidos e eu não queria correr maiores riscos. O odor desagradável era agora de uma mistura de sangue, urina e merda. Aproximei-me, disparei na boca. A bala deve ter atravessado, levando um monte de dentes e qualquer coisa mais que encontrou pela frente, porém não me detive para verificar. Os berros se transformaram em gorgolejos e outros barulhos desagradáveis. O terceiro tiro, na têmpora esquerda, acabou sendo um tiro de misericórdia. Embora eu nem saiba o que é isso.

Após sair dali, disquei de um telefone público para a residência do cara. Quando a pessoa atendeu, deixei bem claro que se tratava de um seqüestro. Usando gíria de mistura com um péssimo português, avisei que não procurassem a polícia se ainda quisessem ver o homem vivo, e que “a gente” ia ligar oito horas depois pra falar sobre o resgate.

Era só pra retardar as buscas e confundir a polícia.

                 Francisco Cleóbulo Teixeira

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Sangue na terra

Quando se sangra o homem

A terra, com ele, é sangrada

Mas o sangue derramado não fertiliza

Porque só é vida quando corre

Nas veias

Quando corre nas veias.

O sangue derramado

Na terra, nada semeia.

É semente estéril

É alimento do ódio

Do qual depois se alimenta

E o alimenta

E se alimenta

E o alimenta

E se alimenta

                                      

 

 

Francisco Cleóbulo Teixeira

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Uma jangada

A vida é uma jangada

A jangada é uma vida

Que navega os caminhos do mar

Que navega um mar de caminhos

Em busca de alimentos

Em busca de emoções

Navega durante a noite

Navega por entre as sombras

Porque a noite é discreta

Porque as sombras escondem

Dos olhos frios da luz

A mesquinhez dos sonhos

De quem não faz outra coisa

Que não seja navegar.  

 

 

Francisco Cleóbulo Teixeira          

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Síndrome

Não te enganes, amigo

É cheiro de morte, sim.

Pavor da voz, do passo incerto

Da taquicardia

Do minuto seguinte

Pavor do pavor.

O absoluto caos

Em cada esquina

Por trás de cada porta

Em cada olhar.

Um trago duplo

Um antidistônico

Só dão um tempo e a certeza

Do retornar mais terrível.

Não feches, não abras as mãos

Não as coloque em nenhum lugar

Porque nada mais é seguro.

Não pises

Não fales não cales

Não olhes

Não ouças nada do que se diga

Agora, e não creias em nada

Do que foi dito antes.

Nada importa.

É que no próximo ato

Certamente, o abismo te aguarda.

 

 

                  Francisco Cleóbulo Teixeira

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Éramos

Éramos três, sempre três

A vida era a porta ao lado

O mundo, aberto em calçadas

O sonho, nossa vitamina.

 

Éramos três, sempre três

O mar cabia num copo

A natureza, numa janela

O universo, em nossas pupilas.

 

Éramos três, sempre três

As cores ficaram mutantes

Os sons, palpáveis

Os fantasmas, covardes.

 

Éramos três, sempre três

A flor morreu na redoma

A Lógica e a Matemática, renegadas

A Filosofia, de fome.

 

Muitas luas passaram

 

Deus não é uma equação!

 

Somos um, apenas um.

 

 

 

Francisco Cleóbulo Teixeira

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Viver

Viver
É ter um olho
Na fresta do tempo
É cravar as unhas na raiz
Do medo cotidiano
É correr
Com todos os pés descalços
Pelas calçadas do sonho.

Francisco Cleóbulo Teixeira

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Plantar

Passadas fortes

Definidas

Nas rugas, o Sol

Vida

Nas mãos, o ferro

Força

Nos olhos, a terra

Esperança

Dúvida.

    Francisco Cleóbulo Teixeira

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A missa

Maria Aparecida caminhava como se não sentisse o peso da enorme trouxa de roupas nem o frio da madrugada. Afora o canto dos primeiros galos e passarinhos, nenhum outro sinal de ser vivente. Povo preguiçoso, o daquele vilarejo. Ou era ela que acordava cedo demais? Gostava de acordar cedo, sim. Terminava logo de lavar as roupas e ganhava tempo para outros afazeres.
Maria já descia a ladeira do rio quando começou a ouvir aquilo. Era o terceiro dia seguido que ela ouvia aquele canto, parecido com canto de igreja, alternado por uma ladainha. Vinha dos lados da capela velha. Mas aquela capela já estava abandonada há bastante tempo. O padre até proibia os meninos de brincarem lá, porque havia o perigo de desabamento. O povo do lugar também comentava que havia atrás da capela um cemitério muito antigo, ainda do tempo dos escravos. Devia ser conversa fiada. Mas o que seria aquela música? Será que estavam rezando missa por lá? E porque alguém rezaria uma missa ali àquela hora da madrugada, ainda mais numa quinta-feira?
Ela suspendeu a trouxa de roupas, virou-se e voltou a subir a ladeira, tomando o rumo da capela velha. Era muito devota, mas ia muito mais movida por curiosidade do que por devoção. Lavaria a roupa algum tempo depois, que rezar pra Deus nunca era perda de tempo. O caminho para a capela era tão pouco transitado que se tornara fechado e escuro, com o matagal crescendo alto de um lado e outro. Por vezes, Maria quase não conseguia passar alguns trechos, como se os arbustos fossem fechar de vez o caminho. Mas ela ia em frente, pois aquele cantar bonito, diferente e cada vez mais próximo atraía de forma quase hipnótica.
Mesmo antes de chegar, Maria já percebera uma luz que saía pela porta da frente. Ela aproximou-se, e era uma luz forte, quase incandescente, como se o próprio Sol estivesse no interior da capela. Ela entrou, e qual não foi o seu deslumbramento. Aquelas pessoas não eram iguais às pessoas que ela via na igreja aos domingos. Pareciam mais bonitas e ela não lhes distinguia os rostos; pareciam mais perfumadas e ela não lhes sentia nenhum perfume; pareciam todos muito bem vestidos e saudáveis, apesar de haverem ali ricos e pobres, velhos e jovens, cegos e aleijados. Maria Aparecida sabia de tudo isso sem entender como.

O tempo passou e Maria, mergulhada em êxtase, nunca saberia dizer quanto tempo havia passado. Entendeu, porém, que terminara a “missa” porque todos agora se dirigiam para a porta de saída. Ela passou a seguí-los e podia jurar que os pés deles não tocavam o chão. Já do lado de fora, caminhavam em direção à parte de trás da capela, onde se dizia que existia o velho cemitério, todos aureolados pela mesma luz fascinante e que nada tinha a ver com a luz do Sol.
À medida que chegavam ao terreno do campo santo, aquelas pessoas iam desaparecendo, umas aqui, outras ali, outras mais adiante… Até que não restava mais ninguém. Maria Aparecida olhou para o chão ao seu redor e não viu nenhuma pegada, a não serem as suas próprias. Ela soube então que, a partir daquele momento, haveria lugar para muitas outras coisas em seu coração, mas não mais haveria lugar para o medo.

Francisco Cleóbulo Teixeira

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